Leio, estudo, passo horas a rir por entre normas revogatórias e repito em voz alta e a gata ouve: Sem prejuízo do disposto no artigo anterior são revogados os rebuçados e as colmeias dentro de teias, os mal educados e tamanho é o delírio que acabo por me deitar a rir. De mim. Qual o interesse do Direito? Deleuze desprezava-o porque lhe era incómoda a linguagem cheia de nuances, truques, rasteiras. O livro, descobri-o hoje no meio de camisolas e recortes de jornais, "La pratique du droit": Il n y a jamais eu qu une manière de penser la loi, un comique de la pensée, fait d ironie et d humour.» Rio das suas opiniões errantes, passeantes por caminhos de pé posto, embora concorde que a linguagem precisava de uma volta linguística que a tornasse acessível. No fundo, querido Deleuze, o teu gozo é este: os culpados que já são culpados, libertar o direito da lei, sobretudo porque o direito nada sabe. És tão difícil de ler e tão bom para gargalhar.
Assisto à vida por um buraco. A hora do chá matinal é sagrada, as fotografias são sagradas, as leituras são sagradas. As conversas de bairro são-me vitais. Saber o que se passa com as pessoas, quem são as pessoas e o meu canto guardado no pequeno café. Abro o jornal, a Lili entrega-me o outro que já não compro. Fotografo. Chega o rapaz e a rapariga do cão e da cadela. Bebem abatanados. Fumam. Ambos são bonitos e nada simpáticos. E por que haveriam de ser gentis?
A política interessa-me, claro. Não consigo ouvir mais lamentos sobre Joacine. Não suporto o fado bicha, o tavares, os câncios oliveiras. A interessante e irritante Joacine não pertence aquele universo de betos universitários e pessoas avulsas sem interesse algum. Quando a olho, o que vejo é uma mulher só no meio de mil grupetas que não são as dela. Apetecia-me arrancá-la dali. Sem condescedência. A Joacine pertence à AR, agora, o partido, aquela coisa sem tom nem som não é ela, é um assunto desses outros. Quem serão? Esqueci-me. Não sei, deixaram de me interessar a não ser como tema de perplexidade risonha. Sujo os dedos com tinta da china. Irrita-me a sujidade, irrita-me. Sinto uma força estranha que me faz levantar todas as manhãs com uma energia e bom humor.
Há uma grande hipótese de nunca ter sido feliz. No casamento? Mas nem pensar. Grávida por minha conta e saudável e uma filha valiosa, valorosa, chata, teimosa. O resto, Deus, foi um erro grosseiro. Ainda penso nisto porque não me livrei desta porcaria de processo. Oh,quid ius? Sim. Gosto muitíssimo de Direito Romano. Mas é tudo tão gigante. A matéria é maior que o canhão da Nazaré.
Entristece-me a ausência da senhora dos jornais. Entristece-me a filha naquele mesmo sítio onde conversava com a mãe sobre o tempo e a minha mania de trocar os trocos e deixar cair moedas. Ambas sabemos do que falamos quando falamos da ausência. Da morte.
O jardim é mais belo no Outono e Inverno que no Verão. Por mim, viveria na Islândia. E por ti? Na China. Não me parece mal. Os chineses do Norte são altos e magros, os do Sul são baixos e magros. Reformam-se aos 50 e começam o dia com tai-chi nos jardins. Não me apetece pensar em Hong-Kong.
Sinto saudades do pai e dos manos. Muitas.
Amanhã vou comprar uma lâmpada.