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Daqui.

Para aqui. A memória encobridora torna-se assunto de cozinha. Il faut un feu très doux et du temps. Só agora me vejo a pegar nas fotos antigas para fazer esta omelete vietnamita. A receita é de Duras, Marquerite Duras, a dona de mesa comprida, madeira antiga, lavada, raspada ou talvez suja. É daqui que venho, do reviralho, marinha e aviação, dos avós deportados, da tuberculose que os matou. Do pai tramado na sua juventude irrequieta e criativa, da mãe boa aluna de Odivelas, números na vez dos nomes. Família mais adulta que criança e contudo entregue à inventiva. Nem de cima, nem de baixo. Na horizontal e foi isto que nos ensinaram. Creio ter aprendido o «dever da solidariedade». Daqui, desta vida sem pretensão, tudo bem-mal passado. Almôndegas e a infância dos pais, manos, tias, as férias, a praia naquela praia. De uma vez por todas, ninguém viveu à grande, mas de forma grandiosa. Erros e maleitas, a realidade engana-se a torto e a direito. Não me inquieto. Não quero o dinheiro de ninguém, diria o Rolo Duarte sentado na sua mesa de trabalho nocturno, só eu sei o que ele queria dizer com isto a olhar-me do fundo dos olhos negros que mos passou. Percebo perfeitamente, mas a luta continua, aqui estou a falar sozinha antes de adormecer. E portanto, todos ficávamos do lado de cá. Pendurados uns nos outros, a conversar e a ouvir as receitas do pai. A tesoura mais cobiçada, a Parker com um número de referência misterioso para tudo o que não recordo. Não havia ainda telemóvel que nos colasse a um dia, uma hora, essa estação do ano, daí acreditar no que me conto, reconto e escrevo. Como fazer um bom arroz? É fundamental lavar o arroz. Vão por mim. Era isso que os Rolo Duarte faziam em grupo, uns deitados, outros nem por isso, as minhas pernas contra a parede, contra as estantes, deditos magros a desalinhar os livros. 

Se fomos perfeitos? Sempre! Quem poderá afirmar que a comida é feita para todos? Ah, mais pas la litérature.
Na família há três momentos masculinos. O do pai, o do António e finalmente o do Pedro. Há um preconceito meu contra a psicanálise: na origem deveria existir uma só língua, as mulheres distinguiam-se dos homens nos seus impulsos-angústias? Freud tem falhas tectónicas que se movem contra a mulher. Tem, não tem? Não eram estas as nossas conversas. Entre nós falava-se do ar, é esta a ideia com que fico e ficarei. Havia uma leveza que se perdeu com a porcaria do tempo. Cada um dos filhos escolheu o pior companheiro, digo, companheira, acrescento ainda a rir que nem uma perdida, la pérdue devo ser eu, que não havendo ar puro nas cidades, pois que o deveremos fazer no campo. Não é minha esta ideia. Sabeis quem me levou a Sesimbra? O João dos Santos. Andei a mapear-lhe a vida. Da praça ao local onde esticava a toalha. Fim. 

 

Na verdade, os pais criaram-nos um mundo imperfeito e belo de perdão e inconformismo, de marimbar e amar os filhos, a filha com uma falta de jeito e tamanho afecto que se torna impossível não perdoar os males. Especialmente o Rolo Duarte. Especialmente a mãe no seu amor desenfreado pelo Benfica que colhia a maior indiferença e/ou gozo do pai que fugia a sete pés do futebol. Íamos ver os filmes do Manoel de Oliveira que era conhecido da família. Cumprimentavam-se. As mulheres Rolo Duarte foram, são de força. Era assim que se explicava a querida tia Lurdes, condutora excelentíssima e profissional das angústias. O importante sobre o estado da mãe apanhei-o num livro emprestado e devolvido, que remédio, pelo Filipe Vicente, psi de Coimbra A e B. Está lá em cima para quem sentir a curiosidade primal sobre assuntos desta sorte. Que raio de morte.  
 

Entrei na igreja e acendi 3 velas. Para não dar conversa ao senhor vigilante de velas, falei-lhe em francês. Despachei o ritual pagão e desci o Chiado a cantar uma melodia clássica tralalalalalalala la la la. 

 

Nenhuma destas imagens-documentos tem legendas. Somos nós. Viemos daqui. Destes rostos, destes corpos. Educados, gentis, bem-humorados e sinceramente sinceros. Estava a ouvir a voz de Agustina Kraus: «ser sincero não é muito inteligente», encolho os ombros e penso o que sempre pensei sobre esta mulher sentada de pés de porquinho gordo: experimenta escrever sobre uma merda que desconheças. Não consegues, pois não? Ser sincero, sobretudo se num ataque de fúria, é aprender a viver aos saltos. Pobre Agustina, tanto talento para acabar morta. 

 

O livro de cabeceira do pai era «A Jangada de Pedra» e o último Oliveira que vimos foi o «Soulier de Satin». Senti o António gelado, do outro lado. Vi o Pedro ainda quente sem respirar. 

 

É na nossa mãe que penso. Claro. 

 

É na minha filha que penso. Sempre claramente. Sempre.  

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