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esta imagem devia estar focada para se ver os poros da pele, as cicatrizes, rugas cada vez mais profundas. De expressão, mas sobretudo da idade. Este ano, corpo, rosto e alma somam 63 anos, ou seja, 22995 dias se estiver certa nas contas. A conversão é, agora, uma das minhas tarefas diárias. Preços em escudos, anos em dias, dias em horas, minutos, segundos. É muito provável que esta contabilidade não me sirva de muito ou até nada. Por que me dedico a converter isto naquilo? Não faço a menor ideia, nem me preocupo com motivos, razões.

Lista de coisas que sei:

A minha data de nascimento, o local geograficamente marcado com longitude e latitude. A profundidade do rio Tejo na zona do porto de Lisboa, os litros de água consumidos a lavar a loiça. Da mesma forma exacta com que registo toda esta parafernália inútil, também oiço o bater do coração, o piscar dos olhos. São folhas e folhas carregadas de números. Daí parto para as estatísticas, curvas de gauss. Nunca fui boa aluna a matemática e só agora descobri o motivo do meu profundo desinteresse e até incapacidade para perceber aquela matéria fascinante, mas densa, entediante. Todos os meus cálculos preenchiam cadernos, blocos de notas castelo, para chegar a um simples resultado em tudo igual a quem se limitava a correr mais depressa pelo caminho mais curto. Essa pressa dos outros era-me excêntrica e verifico, maravilhada, o preciosismo e rigor de David Foster Wallace nas suas derivas pelo ténis. Compreendo-o e à morte que escolheu. DFW era doido varrido. Uma vez aqui chegada corro para me certificar, ao espelho, que temos cenários diversos. Há uma que sou mulher, há duas que sou mãe. Há três que a simetria nas fotografias preenche-me parte da minha cabeça. Marimbei nos 3/4 e preocupo-me em preencher o quadrado com mais quadrados, uns dentro dos outros, até ser quase impossível contá-los.

Encomendei os meus óculos "little brown" mas de graduação superior, o que tanto se me dá porque os irei perder algures. Mais importante que esta futilidade será fazer contas e mais contas para ver se consigo trazer até aqui 2 Clément Rosset. A Grande Familia ficará para outra vez embora o queira ler. Como li o da Springora acompanhada de uma dor fina. A brutalidade nestes récits irrita-me. Entre crianças e adultos não há, não haverá nunca a necessária simetria para que o sexo não se torne um esterco, abuso e mais nada. A actividade não é limpa, mas a porcaria dos velhos intelectuais, homens sem escrúpulos, uns a aquecer as costas dos outros, o que se pode acrescentar? Não há aqui nada que se pareça com alguma coisa digna ou nobre, mas uma cáfila enjoativa, decrépita, patética de estupradores. Venham falar da antiga Grécia que vos atiro com a descoberta da penicilina. Deixem a Grécia antiga em paz.

Estou a olhar-vos com a distância do meu elevado astigmatismo. Ao longe vejo tudo desfocado, com sombras. Habituei-me a andar na rua, nas ruas. Vejo sempre tudo enevoado. Não penso neste facto que considero prosaico. Agora ficaram-me na memória os Rosset que queria ter e só lá para a frente virão, dóceis, parar às minhas mãos. 

Tenho um colis humanitaire  por tratar. 

Tenho máquinas de roupa por fazer.

Tenho uma infinita tradução por acabar.

Tenho sono por conciliar, mas, o confinamento vai aliviar-me dos ruídos que me estraçalham os sonhos.

Hoje, percebi que duas procuradoras avulsas ou talvez não, andaram a escutar e a perseguir jornalistas. Não me espantei, o que já de si tem um poderoso significado, mas deixou-me a pensar e a sentir um profundo desdém por pessoas destas. Não, não se confunda, por favor, este bizarro e grave caso com as escutas de Sócrates e da namorada dele. Ou de Salgado. 

Esta dimensão de hipocrisia nem Kant a defenderia com os seus peculiares pensamentos que aprecio. 

A quantidade de pessoas que já passaram pela minha vida e não deixam saudades é relevante. Onde fico eu no meio destes tropeções? Por vezes, dou comigo a rir, infantil, do número gigante de partidas que preguei a muita desta gente. Coisas sem consequências funestas e que me dão gozo. Aliás, rio, escangalho todo o corpo na galhofa, sacudo os ombros, a cabeça vai atrás e chego à frente. Escangalhada a rir. 

No filme Variações, o actor José Raposo tenta passar por Mário Martins. Tenta, digo bem, não consegue. Detestei este filme "tipo" Netflix. 

Lamento que esta minha imagem não seja mais intensa. 

Recomendo a todos "Ressusciter" de Christian Bobin. Desaconselho a tradução do primeiro poema de Louise Glück no livro "Averno". A versão portuguesa está carregada de pontos de interrogação inúteis. E assim se infantiliza o leitor e a autora. Imagine-se um Saramago em francês com muitas, incontáveis, inaceitáveis vírgulas.Expliquei-me? Falta-me pegar na tradução da outra obra de Glück. Estava aqui a imaginar-me na nova Bertrand de 1700 Lisboa, mas o confinamento vai tomar conta das nossas vidas.

 

Não sei a quem ouvi a seguinte frase: "Não nasci para ser feliz". Terá sido no "Variações"? É possível.  

 

 

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