A voz é a de Pauline Oliveros, compositora, música, filósofa e morta.
As imagens são de um texto crítico de Eduardo Prado Coelho, escritor, professor, filósofo, leitor atento, criador de amizades com quem bem lhe apetecia e morto.
A obra criticada é um livro. Que posso dizer? Escrevi-o durante semanas a fio, depois de ter a casa em ordem, depois de ter o trabalho mais ou menos em ordem. Fechava a porta do escritório, respirava fundo. Escrever foi relativamente fácil. Cortar e rescrever foi-me muito penoso. Farta da "ordem moral" das coisas. Primeiro assegurar a alimentação e mil assuntos. Só depois o opus do caraças. Não é nada. Não foi nada. Vendeu, falei a contragosto sobre o que me tinha sucedido: escrever e publicar um livro estranho. Até eu o achava esquisito. Como se não tivesse saído de mim.
São estas as imagens que guardo do recorte de jornal por ter sido a Maria João RD a recortar a página do gato do EPC. Não me interessa nada recontar. Nunca mais li o livro que escrevi porque fui acumulando ao longo destes anos tantas notas que me perco a ler tanta linha doida. Umas à mão, outras muito limpas no computador, outras apenas na minha cabeça, de cor. Há parágrafos inteiros decorados a decorar a parte de casa da minha cabeça. Porque a cabeça tem essas divisões para além dos hemisférios facilmente identificáveis.
Um facto: falo alto enquanto durmo e já acordei com o meu riso. A regra alfapendular pende mais para a galhofa. Não sei. Virá de miúda. Reparava nos botóes desirmanados, nos vincos duplos das calças dos homens quando apanhava o eléctrico para casa. Parava a ver folhas ou pardalitos mortos, coitadinhos. Andava sempre com um pau.
Não sei porque aceitei casar. Foi um pouco como se me perguntassem se já bebia um chá: Sim. Disse: está bem. A ideia era ficar protegida por "um escudo invisível" amparada.
Neste período pascal vi o filme do Mário Barroso dividido em três por questões de ordem praticamente risível. Adiante. "A Ordem Moral" impressionou-me porque a história da verdadeira dona do Diário de Notícias já a conhecia na versão possível da Agustina, "Doidos e Amantes". Lera aquilo sem grande interesse, muito provavelmente a comentar esta-tipa-está-sempre-a-escrever-sobre-sexo, mas disfarçada de romance ou novela, sei lá, de amor. Ah, o amor. Não. Toda a obra de Agustina é sexo por todos os lados. Por vezes, tinha a sensação de estar sob ataques cerrados de déjà vu. En garde!
Nunca fui à bola com a Agustina, escreve tão bem. Também já morreu. Portanto será, escrevia tão bem, à mão numa letra cursiva. Agora invento. Vi umas folhas manuscritas dela, belíssima caligrafia.
"A Ordem Moral" é um bom filme com a particularidade de ter a frágil presença de Maria de Madeiros que limpa as cenas todas onde entra. Nem se vê mais nada. Reparei que o Albano Jerónimo "exibe" uma belíssima, imaculada dentadura.
Na verdade o que me tocou foi o grande argumento do marido de Adelaide para lhe roubar a fortuna, o jornal, tudo. A coisa era afinal do foro mental: a desgraçadinha era histérica (uma ova!) e portanto irresponsável. Internável em asilo que foi mesmo onde parou com os frágeis ossos. Ah, sim, fugira com o motorista. Um detalhe. Foi aquele, podia ter sido outro? Talvez. No século XX, travou-se aquela batalha entre a mulher quase sozinha contra um universo patriarcal de doutores e poderosos. As mulheres não foram boas para com aquela mulher, reparei nessa interpretação do Saboga, por sinal bastante claro em Agustina e passado à acção pelo Barroso. Gostei. Não. Gostei muito da Maria de Medeiros e daquela sórdida forma de vida. A acusação de "abandono do lar" quando o lar a tinha abandonado com tudo lá dentro. Havia uma criada de servir grávida do filho de Adelaide, o aborto foi feito e bem feito e tudo bateu cá dentro com tanta força que abri mais esta página. Claro que o final é feliz. A rica fica menos rica, mas ainda assim acabará os seus dias a ver o mar.
Notas: Sou uma tesa do caraças, mas conheço e bem a caracterização estereotipada da mulher que grita, da menopausa, dos médicos e medicamentos. Da maluca.
Convém que se diga que Adelaide, a legítima e única herdeira do Diário de Notícias, rica por essa via, nunca foi louca, sequer histérica. Uma mulher.