Aqui dentro estás tu. Se bem me falaste da Rua de Gustavo de Matos Sequeira e nem sequer me lembrava desse passeio. Passaram anos e dias, horas e agora apenas minutos. Que me importa a história do olisipógrafo se esta é uma rua infantil. A tua rua de criança. Recordo, claro que recordo, que o sol batia nas paredes, muros e portas e um silêncio onde apenas se ouviam os meus saltos. Por esse tempo não saía à rua sem saltos, sempre aos saltos. Corria Lisboa sem me cansar, saltos altos, raramente altíssimos. Lembras-te das mules? O que amava o ruído das mulheres nos ares. Ouviam-se-lhes os passos e imaginavam-se, de pronto, as ancas a dar a dar. Lisboa só dá trabalho ao andar, mas torna-nos a todas, sensuais ou caso contrário caímos redondas no chão. Nestes tempos modernos falar disto parece melancolia marada de velhos. Que o seja.
Outro assunto que cola. A mais bela edição dos "Diálogos de Amor" és tu quem a tens porque fui eu quem ta deu.
A edição ficou rara mal a livraria nos virou costas. Nem sei mais no que aquilo deu. Ou ainda existe? Não vou verificar nesta máquina, não me apetece. É como se estivéssemos a conversar sobre nada, ou a rir que nem uns doidos. A esta edição se associa doce de abóbora e um sobretudo castanho, meu, com um cinto de seda atado em laço. Coisas femininas. Tenho a certeza tão certa incerta que era maria rapaz sendo maria rapariga. Gostava de ver a mãe a cozinhar, tinha uma colecção de tachos e panelas em ponto pequenino e levava tudo para o jardim do campo grande onde era cozinheira em chefe de relvas bem migadas e pétalas de malmequeres bem me queres para temperar. Reparei hoje, ao arrumar mais livros que Cervantes se refere em termos elogiosos ao que eu considero um dos mais belos livros sobre o amor. Ambos sabemos que disto nada se sabe e que toda a racionalização mata o bicho. Verifica aqui, por favor, o meu olhar sobre este assunto que entre nós é também de amizade, comme il faut.
Agora vou dormir. Li a tua carta sentada nas escadas de um prédio. Entraram dois rapazes e um casal de velhos refilões, entre eles. Um casal cansado, coitado. Ela repetia coisas e ele encolhia os ombros. Amparados na velhice, pensei e ri. Conheces, certamente conheces as fotografias daquele fotógrafo muito falado cujo nome não me ocorre, ai, digo, as fotografias dos casais chateados que nem perus. Calados. Sem nada. Vazios. Eu associo sempre estas imagens a planos de assassinatos perfeitos. Ela cozinha para ele ovos moles até o tipo, diabético e com tensão alta, cair para o lado e finalmente livre do mastronço, ela levanta-se da mesa, vai ao cabeleireiro pintar o cabelo de uma cor extravagante e de carteira nova sai, ao salto alto, por Lisboa a respirar Lisboa. O sol forte a dar nos muros, nas paredes e portas da Rua de Gustavo de Matos Sequeira. É muito possível que o amor nunca se tenha arredado daqui, mas, ora cá está, não me apetece nada escrever sobre isto.