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Não está editado em português, em Portugal. Ofereceram-mo com o conselho: não o leias agora... Desobedeci e comecei a ler mal me apanhei sozinha, sentada, deitada para um lado e o outro, barriga para cima, para baixo. Sublinhei tudo o que me interessava, incluindo um erro curioso e compreensível dado que Ferrante escreve sem parar. Assim a imagino: torrencial, diria em conversa de passar o tempo, agarrada ao lugar-comum. Ora nem mais. Este é o terreno de Elena Ferrante, (não resisti e fui espreitar-lhe o rosto de professora de matemática, história, física, geometria descritiva, italiano, inglês, francês. Professora universitária em Bolonha, os passos mais ou menos lentos e o eco dos passos da professora Ferrante por debaixo das arcadas ou de liceu, a Ferrante dos sapatos de salto prático.) breve: é tradutora e deu-se bem com os livros que escreve para as mulheres como ela e para Marcelo mostrar que lê no avião que o levou a Cuba). Ferrante, cabelos brancos, óculos na da moda e eventual presbitismo. As histórias dela têm uma densidade esquisita: ora me parecem iguais a tudo para, num momentito, perguntar: mas o que vem a ser isto? E neste torvelinho ao ler o escrever de Ferrante não há interrupções, ou pelo menos assim o fiz. Li até ao fim, de enfiada, os dias do meu abandono, infelizmente feliz para a Olga que merecia matar o marido Mario que a larga com o cão Otto cujo destino é o céu dos cães, os dois filhos, Ilaria e Gianni e uma cena nojenta, muito bem escrita, com o vizinho Carrano, um tipo alto, magro, vestido de escuro, coitado, talentoso músico, sensível, coitado. Coitados de todos incluindo uma anémica Carla jovem que cedo irá ficar velha. Adivinho. O potencial de Ferrante está aqui: como é que uma escritora cujo dom está a milhas de Françoise Sagan, para dar um exemplo, me leva a concluir uma leitura de novela escrita como um filme? Porque alguém viveu aquela porcaria toda que Elena Ferrante, ainda no início da sua vida de escritora, regista com palavras francesas (como será no original?) que todas juntas são marteladas na cabeça, coração, estômago. É um livro violento, Olga maltrata-se e às crianças, Otto irrita-a, tudo a enerva ao ponto mais elevado do puro asco. Fora da realidade desta mulher que deixou de trabalhar por conta de um Mario marido egoísta, como tantos, como todos? a rapariga Olga torna-se na mulher barata tonta com listas de supermercado, sapatos dos filhos que crescem, as camisas do marido e o raio que a partissem. É fácil detestar Olga e aquela família toda. Uma falsa família por vias do alheamento do homem que se esfuma. Não se sabe, nunca, ao certo, como pegar Mario pelo braço para o arrastar ao pontapé até à casa onde largou Olga, filhos e o cão Otto, um desejo dele. Que ódio. Agora que já contei tudo o que havia para contar, sobra o modo como Ferrante nos prende: o texto é de uma cesura, nada a mais, nada a menos, incluindo o erro, e o crescendo tem o jeito de um thriller. Neste livro, Ferrante é discípula de Stephen King que já de si é um portento de manipulação dos leitores. Nós. De Ferrante sei apenas da amiga genial que me pareceu inferior em tudo e mais alguma coisa a este começo de vida literária «Les jours de mon abandon» tem uma moral lixada: arbeit macht frei. É neste campo de concentração que Olga se liberta. Peculiar crítica ao nosso modo de viver que pede crianças que suportam os velhos que são uma chatice com as mulheres dobradas a levar às costas tudo. Arbeit macht frei, Ferrante. 

Amo esta imagem. Por mais voltas que dê à memória não consigo situá-la em espaço algum da minha vida. É deste ano, sim e numa sala de cinema, claro. No meu caso, a memória não encobre, apaga. Fica-me uma branca no negro da sala desta imagem que adoro. 

Voltei às fotografias debaixo de terra. Muito concentrada. Há umas em que estou a rir para o lado. Essas são secretas. 

Sou especialista em amarrar lenços na cabeça. Estudei com atenção, empenho e louvor a forma como elas, as africanas, fazem dos lenços uma grande festarola. 

O Verão não acabou e o símbolo aqui está. O pimento preparado para grelhar muito bem grelhado ou temos problemas com a digestão. O pimento assado no quintal, assado em Sintra pelo pai e feito em salada pela mãe. Também sou mãe. 

Li com espanto os poemas de Licínia Quitério. É verdade que já mos tinham lido, um, dois. Escolhi este com ligação para O Sítio do Poema de Licínia.  

Há um calor absurdo nas florestas.

Nem o silêncio,

nem a mão na testa,

nem as cores da distância,

nada pode parar a fogueira

a lavrar nos ramos

da nossa velha árvore.

Há palavras 

capazes de abrandar

a tentação dos precipícios

quando o Verão descola e incendeia.

Não as dizemos.

O Verão há-de passar

e outro e outro

e as palavras 

presas na garganta

do nosso grande rio, 

na seiva da nossa velha árvore.

Palavras de água à espera da torrente.

Poemas que sei arrumar e outros que me baralham. Não é a poesia bruta de Adília Lopes, não é do quotidiano, ou carregada de referências gregas, otomanas. É poesia de uma mulher a escrever, a escrever, a escrever, a escrever. Devia ser editada na Argol. Em francês. Lembrei-me da Argol. Em Portugal só vejo na minha frente a Assírio e Alvim porque tem capas belas, algumas, e autores bons, alguns. 

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