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11 de Agosto de 2018. 

Ver um povo a lutar para sua exploração acabar foi o que sabes que eu vi enquanto ensinava a escrever o nome Madalena, a uma senhora, outra Madalena. Caía o dia, eu lavava os ainda mais longos cabelos e deixava-o secar ao ar seco do Alentejo. A mãe professora, imagina tu, ia de mesa em mesa ver como seguiam os lápis pelo papel. Eram todas mulheres que os homens haviam desistido por falta da resistência que a elas sobrava. A Madalena, a senhora Madalena era a mais empenhada, queria e queria e porque queria ler e escrever e que fosse ela a ler as cartas do filho que vivera «na França» e agora na Alemanha. Era o Manuel António, oposto do nome do teu tio António Manuel. E a senhora Madalena era de todas a mais teimosa e exigente comigo. Achava que tudo ia muito lento. Que ia, que vai sempre. Um dia apareceu-me ainda mais irritada que o habitual e disse que a cooperativa me devia despedir. Fiquei triste e atarantada. Nessa noite escrevi, como de costume ao teu avô, longas cartas lhe escrevia, mas dessa história funesta guardei segredo. Talvez a senhora Madalena estivesse certa. E portanto lá seguiu a mensagem minha com o selo no canto direito. E uma flor desenhada no verso onde se cola o envelope. A flor com rodas. 

No dia seguinte a minha expectativa era tão grande e ruim. A senhora Madalena não estava presente e as senhoras colegas olhavam-me curiosas. Até uma delas erguer a voz para me dizer que a Madalena tinha dias e piores noites e que eu só dali sairia por  cima delas todas. Agradeci e ri, malandra, tu sabes como é o meu riso de vitória. Estávamos pois naquilo e entrou a senhora Madalena com uma nódoa negra no olho. Caíra, escorregara e caíra e a porta batera e numa história sem fim pediu desculpa que não me queria despedida. Trazia bolinhos de azeite, uns biscoitos-biscoitões. Eram para todas e sobretudo para mim que de tão magra, assim falavam elas da tua mãe, parecia que nem ninguém me via. Coitadinha. Coma, coma, engorde a menina ou não há homem que a olhe de maneira alguma. Só a metade daquilo me enchia o estômago até depois do jantar. Sei dizer-te que não percebi nada do aleijão forte e feio da senhora Madalena até outra me explicar com detalhes. O marido bebia e depois batia nela. Na minha senhora Madalena. Nunca tal me passaria pela cabeça. Tinha 17 anos ou 18 e fiquei pasma. Como é que um homem, simpático e trabalhador era também um bicho monstro? 
Quando voltei para casa, a senhora Madalena sabia ler com algumas hesitações, devagar, ao ritmo  dela, mas o nome escrevia-o na perfeição. E assim contou ao filho sobre o pai, e este foi assunto de reunião da cooperativa. Nunca mais vi a senhora Madalena, nem o teu nome se relaciona directamente com ela. E daí não sei. Não há Madalenas na família. Sendo única que o és, pela forma como te entregas aos teus filmes brilhantes, às fotografias sempre certas, como se os teus olhos atentos, desde bebé, muito atentos estivessem destinados a captar momentos, instantes. A reparar na luz da casa da tua avó, nos animais, nas pessoas que vão e vêm. E da tua cabeça saem ideias que me espantam e o teu modo de questionar o mundo não é leve. Trazes contigo uma densidade que me orgulha e por vezes atrapalha. As tuas leituras tão bem escolhidas e explicadas não para te reconheceres, mas com a delicadeza de quem anda em frente, seja lá que raio te reserva o futuro. Quando acabares a Camille Paglia, fazes o favor de ma devolver a esta biblioteca intersticial do caos. 

 

Na realidade, da mesma forma que nunca sei onde ponho os óculos o que te queria dizer é que eu vi este povo a lutar. Nem sempre certo, nem sempre como eu esperava, mas com uma fúria resistente notável. Gostava muito de ter sido clara. Todas as utopias têm consigo um propósito de se tornarem realidade. E é isso que significa «eu vi este povo a lutar». 

Lisboa. Nasceste por voltas das 21:45. És muito parecida com o tio Pedro que por sua vez puxava ao teu avô António que nunca te conheceu. Iria adorar-te, mas isso sem dúvida alguma. Corro o risco de ser pretensiosa com esta apreciação. Mas tenho esta ideia feita. Aliás, eu vejo-te diariamente a lutar, para a tua exploração acabar. 

O poema é do Zé Mário Branco

Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam História na mão

Sobre as águas calmas
Um vulcão de fogo
Toda a terra treme
Nas vozes deste povo

Mesmo no silêncio
Sabemos cantar
Povo por extenso
É unidade popular

Somos sete rios
Rios de certeza
Vamos lá cantando
No fragor da correnteza

Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam História na mão

A fruta está podre
Já não se remenda
Só bem cozidinha
No lume da contenda

Nós queremos trabalho
E casa decente
E carne do talho
E pão para toda a gente

Ai, meus ricos filhos
Tantos nove meses
Saem do meu ventre
Para a pança dos burgueses

Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam História na mão

Alça meu menino
Vê se te arrebitas
Que este peixe podre
Só é bom para os parasitas

Só a nosso mando
É que há liberdade
Vamos lá lutando
P’ra mudar a sociedade

Bandeira vermelha
Bem alevantada
Ai minha senhora
Que linda desfilada

Eu vi este povo a lutar
Para a sua exploração acabar
Sete rios de multidão
Que levavam História na mão

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