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11 de agosto 1992 . corfu
Querida filha, o teu pai chama-se Lawrence Durrell e tu acabaste de nascer na nossa casa de Corfu. O parto foi normal. Gritei durante umas quatro ou dez horas, não sei precisar. As dores nunca foram o motivo da algazarra, mas antes os animais do teu tio Gerald que insistiam em observar um acontecimento natural da vida animal: o aparecimento mágico de uma rapariga robusta, linda, rosto, repara que escrevi rosto, redondo, menina pacífica excepto quando a fome tomava conta do teu corpo. Por mais que berrasse para que o asno do teu tio me levasse dali para fora os dois pelicanos, a preguiça, o burro, e tantos eram os animais de olhar fixo na tua mãe, eu, que se me tornava impossível concentrar no essencial, Gerry continuava a ler como se nada mais existisse à sua volta, excepto quando a tua boa vinda ao mundo com o mar azul, este mesmo, de Corfu lhe deu nas vistas azuis, como as ondas porque as via, através da janela, a água mais bela do planeta e das «ilhas paradisíacas gregas». Sei que te lembras disto porque estou sempre a contar e a recontar a mesma história. Todos os anos és filha de um pai escolhido segundo um sonho e bom humor.
Sempre foi o meu estar: inventar mapas e apropriar-me devidamente do que amo. Em 2019, é este o ano, amo este teu pai escritor. Em novo, o pai era muito elegante, magro, bem vestido mesmo em calções e alpergatas, sobretudo nesta informalidade blasé. Era ele quem escolhia a sua roupa, lenço de seda ao pescoço, óculos escuros redondos, chapéu de palha branco com tira de seda negra e assim aparecia sempre lindo, bem disposto, melancólico e mais belo que toda a estatuária grega. Fazia-me rir. E depois «O Quarteto de Alexandria» nunca deixará de ser uma obra-prima que deverás ler. Mais dia, menos dia ofereço-to, por ora, esqueci-me de o procurar. Na verdade, olhei para as estantes e desisti de o encontrar. Terás tempo. Temos tempo.
A tua existência salva-me diariamente da desgraça que é ter uma estranha verruga no pequeno dedo da mão esquerda. E tu que és esquerdina como a tua tia Lourdes Durrell. Sabias? E eu mesma nunca sei distinguir a esquerda da direita, embora as situe, claro. Durante anos escrevia a preto um D e um E nas nãos. Seriam tatuagens que saíam com o tempo porque não as esfregava como deve ser. A tua avó repreendia-me, mas acabava por rir com o truque gráfico e chamava-me excêntrica. Nunca o fui por pudor.
Corfu recebeu-te ao calor de Agosto com uma praga de moscas. Um capricho da tua natureza de leão. Daí o Simba, o cão leonino mais encantador do universo dos cães e o menos bem educado do mundo dos animais. Contudo, sempre o amaste com zangas e claro que desconfiarei sempre da forma como o tratas, mesmo que reconheça as tuas extraordinárias qualidades de mulher. Já és mulher. Digo, já és mulher há uns anos enquanto me esforço por meter esta ideia na cabeça.
Para o ano serás filha de outro amor meu. Mas sempre, sempre com mar, nunca uma serra nos poderia dar guarida por ser bruta e obviamente seca. É impensável vivermos sem as ondas, as profundezas, os olhos abertos debaixo de água e os cabelos compridos, esticados, carregados de água salgada. Ficam mais fortes e também ásperos.
Para o ano que vem serás ainda mais mulher e eu envelhecerei contigo tendo a maravilhosa possibilidade de te escolher o pai que amo e amarei até amar outro e outro e outro pai. São tantos os pais que amo, curiosamente quase todos escritores, um ou outro cineasta como tu.
Deixo-te aqui a voz do teu tio Gerry. Vai ouvindo o que ele nos diz e em especial a ti. A frase correcta: vai ouvindo o que ele te diz.
Amor da mãe.
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